O Globo
A rádio-escola nunca saiu da papel, mas a discoteca se tornou um dos legados duradouros do período de Mário como gestor público. Hoje vinculada ao Centro Cultural São Paulo (CCSP), a Discoteca Oneyda Alvarenga — batizada com o nome da discípula e amiga de Mário que administrou a instituição desde o início até se aposentar, em 1968 — completa 80 anos com um acervo valioso. São cerca de 72 mil discos (45 mil de 78 rotações e 27 mil LPs), 62 mil partituras e 5 mil periódicos relacionados à música, além do material coletado pela Missão de Pesquisas Folclóricas, coordenada por Mário em 1938.
O aniversário está sendo celebrado este mês com o lançamento de um portal e uma série de eventos, como debates, shows e a exposição “Discoteca 80: um projeto modernista”, com fotos, documentos, objetos de época e gravações. O objetivo é apresentar a um público mais amplo o trabalho da instituição, que atualmente recebe cerca de 1.500 visitantes por mês.
— Recebemos desde pesquisadores e estudantes de música a produtores e ouvintes que vêm por puro lazer. Costumo dizer que atendemos do maestro ao morador de rua — diz Jéssica Barreto, coordenadora da Discoteca Oneyda Alvarenga.
Em tempos de streaming e downloads, quando as “irradiações musicais” já não dependem tanto do “emprego do disco”, como escreveu Mário, a discoteca busca novas formas de difundir seu acervo. Recém-inaugurado, o portal será alimentado com itens da coleção e vídeos e podcasts criados a partir dela. Por enquanto, além de informações históricas, há uma pequena amostra da variedade do acervo, de Elis Regina e Bob Dylan a raridades como “Jorginho do sertão”, primeira canção sertaneja gravada no Brasil, em 1929, pela dupla Mandi e Sorocabinha.
— Uma das intenções de Mário era dar subsídios para compositores brasileiros conhecerem a música feita aqui e no exterior. Queremos continuar a difundir esse acervo para artistas e ouvintes em geral. Muita coisa que temos aqui não está disponível na internet. Nosso objetivo é fazer da discoteca um ponto de encontro para quem quer ouvir e discutir música — diz Jéssica, lembrando que a maior parte do acervo está digitalizada e pode ser consultada gratuitamente.
No último sábado, o aniversário da discoteca foi comemorado com uma “roda de escuta”, bate-papo em torno de discos do acervo. Nos anos 1930, Mário e Oneyda promoviam eventos semelhantes, exemplo da concepção ampla que o modernista tinha da gestão cultural. Essa concepção está exposta no recém-lançado “Me esqueci completamente de mim, sou um departamento de cultura” (Imprensa Oficial de São Paulo), organizado por Carlos Augusto Calil e Flávio Rodrigo Penteado, coletânea de documentos oficiais produzidos pelo escritor enquanto dirigiu o departamento, entre 1935 e 1938.
Os documentos mostram Mário se debatendo com o que chamava de “espessa goma da burocracia” em sua luta para implantar projetos ousados, como a Missão de 1938, que percorreu estados do Norte e Nordeste registrando danças, cantos e rituais. As gravações da Missão hoje fazem parte do acervo da discoteca, assim como documentos de outros projetos criados por Mário, como a Sociedade de Etnografia e Folclore, que teve colaboração do casal de antropólogos Claude Lévi-Strauss e Dina Dreyfus, e o Arquivo da Palavra, registro sonoro do modo de falar em várias regiões do país.
A sobrevivência dos frutos desse trabalho deve muito a Oneyda Alvarenga. Antes de morrer, em 1945, Mário deixou uma carta em que pedia a ela que desse continuidade a suas pesquisas sobre cultura popular. Ela catalogou o acervo da Missão, a partir do qual lançou discos da série “Registros sonoros do folclore musical brasileiro”, e organizou livros póstumos de Mário sobre o assunto, como “Danças dramáticas do Brasil” (1959) e “Os cocos” (1984).
— Mais do que criar um acervo, Mário e Oneyda queriam que ele chegasse às pessoas. Era um grande projeto público de musicalização. E é importante lembrar que, sem o trabalho dela, a discoteca não existiria — diz Flávia Camargo Toni, professora do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) da USP, que colaborou com Oneyda, morta em 1984, na organização de um projeto inacabado de Mário, o “Dicionário musical brasileiro”, lançado em 1982.
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